sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A ordem natural - Heraldo Barbuy

Todo direito se funda no critério moral do justo e do injusto inato na razão humana. O direito natural não foi inventado pela razão, nem fabricado pelos juristas. Não é imanente mas transcendente. Está na razão, anteriormente a todo direito escrito. É uma norma de conduta tão sólida como os princípios da inteligência são uma norma da atividade especulativa e assim como não se pode pensar fora dos princípios da inteligência, assim também não se pode agir fora do princípio pelo qual devemos fazer o bem e evitar o mal. Santo Tomás elaborou uma admirável fundamentação metafísica do direito natural, que é constituído pelos princípios inerentes à natureza racional do homem; e o direito civil só é direito quando traduz o direito natural. Os Estados não são a fonte da moral e do direito e uma lei não é justa pelo simples fato de ter sido promulgada pelo Estado. Os Estados contemporâneos, oriundos do individualismo com suas raízes idealistas e do socialismo, com suas raízes materialistas, podem promulgar e promulgam muitas leis injustas, que ferem os princípios do direito natural. O Estado individualista, e o Estado socialista principalmente, já são em si mesmos violações do direito natural que repele, com a mesma energia, o individualismo e o socialismo.
O direito natural é um conjunto de preceitos transcendentes que devem reger não só o comportamento dos indivíduos, mas também a ação dos Estados. É um limite que se impõe ao poder cada vez maior do Estado, que aniquila, nega, destrói os mais invioláveis direitos naturais da personalidade humana. O Estado contemporâneo, fundando-se no incrível pressuposto de que o indivíduo vive para a espécie e o cidadão para o Estado, se converteu numa sociedade anônima de fabricação de leis em massa e em série, que não têm na menor conta o fato essencial pelo qual o Estado não é fim mas simples meio e a personalidade humana não é simples meio mas verdadeiro fim. Tudo quanto destrói os direitos e as liberdades concretas da personalidade humana atinge frontalmente o direito natural, é uma violação da lei verdadeira, que não passará impunemente porque há de reverter na maior das infelicidades sociais. Só o direito natural é justo. E um Estado só realizará a justiça social quando todas as suas leis escritas se fundarem na razão natural, em diametral oposição com as reformas atuais, que fazem do indivíduo um autômato, da sociedade, um rebanho e da liberdade, um mito. Pode-se legalizar a injustiça e a fraude; pode-se erigir em sistema a espoliação da família pelos impostos de transmissão e as partilhas obrigatórias; pode-se eliminar o direito de propriedade pelos tributos extorsivos; pode-se proletarizar o trabalhador e gravar o rendimento do trabalho com taxas excessivas e contribuições calamitosas; pode-se confundir a educação com a instrução, negando à religião o direito de educar e conferindo ao Estado o a obrigação inoperante de instruir. Pode-se em suma negar o direito natural em todos os seus graus. Mas não se pode com isso abolir um profundo senso de injustiça, nem substituir o direito natural por um direito artificial. O Estado tem a força para garantir a execução de suas leis escritas, justas ou injustas. Mas a ordem natural tem uma sanção muito mais poderosa no fato de que toda a sua violação é punida pela desgraça geral, pela desordem, pela instabilidade, pela revolta e pelo caos.
(In Ecos Universitários (Órgão Oficial do Centro Acadêmico "Sedes Sapientiae". Ano III, nº 13, São Paulo, setembro de 1950, p. 1).

segunda-feira, 30 de março de 2009

Prefácio de "O problema do Ser" - Heraldo Barbuy



PREFÁCIO



O autor do presente trabalho diante do dilema de escolher e desenvolver com relativa perfeição um tema secundário — ou escolher e desenvolver de modo imperfeito e incompleto o tema central de todo pensamento filosófico, — o tema do ser — não hesitou em optar por esta última solução, certo de que a intuição e o problema do ser constituem o núcleo vital de toda filosofia, através do qual, como do centro de uma circunferência, podem dominar-se simultaneamente todos os pontos da periferia.
Não há pensamento filosófico, realmente capaz de prescindir da intuição do ser e dos seus problemas, e a mesma filosofia contemporânea dos valores, bem como as formas já transactas do idealismo, do positivismo e do materialismo, erigindo-se em correntes de pensamento anti-substancialista, longe de eliminar o ser de suas cogitações, nada mais fazem do que subtraí-lo ficticiamente da sua linguagem, — porque o pensamento do ser e a meditação sobre a natureza do que é, são tão inerentes à filosofia, como a filosofia ê inerente do objetivo das suas indagações.

Assim o tema do ser, que não pudemos infelizmente, nos limites deste trabalho, desenvolver em toda a sua amplitude, é o único que nos possa conduzir ao âmago e à essência da filosofia. Dada a magnitude do tema, seja-nos perdoado o havermos tratado sumariamente problemas de grande relevo, que se levantam a cada passo no decurso destas páginas, deixando à margem outros que mereceriam a maior atenção. Mas o nosso propósito não podia ser o de redigir um tratado e sim apenas o de expor de maneira sucinta e com justa modéstia, os fundamentos da atualidade do pensamento do ser. O ser é objeto essencial da filosofia — constitui a filosofia mesma — e foi em vão que estes três últimos séculos de pensamento, nas suas linhas dominantes, tentaram contornar o pensamento substancial do ser, dando-se a si mesmos a ilusão de o haverem superado, pelo simples fato de se manterem ao seu derredor sem chegar até o seu núcleo.
Se não há na filosofia tema de maior importância que o do ser, não há outro também que seja tão propício ao estudo de todas as correntes filosóficas. Todo aquele que forja ou que desenvolve uma visão determinada do mundo e da vida, coloca-se dentro de um ponto de vista, através do qual se torna possível a exposição coerente e a crítica rigorosa de todos os demais, constituindo também essa crítica uma revisão permanente do seu próprio ponto de partida. Não há nada mais nefasto no ensino da filosofia do que a exposição desordenada, heterogênea, sem nexo, de assuntos dispersos, destituídos de todo significado, porque não referidos a uma posição determinada, destituídos de toda coerência porque não governados por uma atitude dominante. A filosofia é uma vivência e não um conjunto de fórmulas. E formação e não apenas informação.
Menos perigoso não é o hábito de tratar sociologicamente a filosofia, hábito que o autor deste trabalho procurou rigorosamente evitar, pela muita preocupação que sempre lhe trouxeram os problemas da história e da sociologia e pelo conhecimento nítido de que a filosofia e a sociologia abrangem zonas distintas e de que não há nada mais absurdo nem mais anti-sociológico do que tratar sociologicamente os problemas da filosofia.
E finalmente, nos limites desta tese, não nos foi possível abordar senão alguns aspectos da filosofia do ser, eliminando por fim as citações eruditas que nada mais faziam do que sobrecarregá-la. Citaram-se apenas alguns autores, dos inúmeros cuja leitura no correr dos anos influiu nas presentes considerações.
HERALDO BARBUY


São Paulo, 7 de fevereiro de 1950

sábado, 14 de março de 2009

Heraldo Barbuy



Por Victor Emanuel Vilela Barbuy


Neste dia 09 de janeiro completam-se vinte e nove anos do falecimento de Heraldo Barbuy, brilhante professor, pensador, filósofo, sociólogo, historiador, jornalista, conferencista, orador e tradutor infelizmente tão desconhecido das novas gerações.
Nascido em São Paulo, no ano de 1913, era filho de Hermógenes Barbuy e de Maria Chinaglia Barbuy aquele que foi - no dizer de Paulo Bomfim, o poeta da Terra Bandeirante - um “cruzeiro estelar” que a todos guiou "através do mar tenebroso destes dias”. A seu lado, o autor de “Transfiguração” e muitos outros homens de pensamento contornaram o “Cabo das Tormentas” e rumaram “para as Índias secretas do pensamento e da beleza”.
Barbuy, “último cruzado num mundo onde os homens se mecanizam e as máquinas se espiritualizam”, conduzido - como lembra o poeta de "Armorial" - pelas “paixões e por sua vontade de acertar, caminhou da trapa ao ceticismo, do ceticismo a São Tomás, de Santo Tomás a Heidegger”.
Heraldo - como observou Gilberto de Mello Kujawsky - foi sempre fiel ao nome, que significa arauto, uma vez que jamais deixou de ser o portador da palavra e de seu poder espiritual. "Não da palavra oca e sonora, e sim da palavra repassada de pensamento e sentido, 'logos'”. O autor de “Fernando Pessoa, o outro” - que se considera devedor de Barbuy pela revelação que este fez, a ele e a tantos outros, “da vida como missão de grandeza, da cultura como criadora de sentido, da história como fonte da realidade, da poesia e da mística como iniciação ao êxtase” - evocou o “assombroso poder verbal” com que Heraldo Barbuy “familiarizava imediatamente os ouvintes" com os temas por ele focalizados nas salas de aula, nos salões de conferências, no rádio, na televisão, ou nas simples conversas entre amigos.
Heraldo Barbuy, “personalidade marcante de fulgurante inteligência e de soberbas virtudes humanas”, no dizer do pensador humanista Jessy Santos, foi, ainda segundo as palavras de Jessy, um “católico fervoroso”, “um homem religioso no sentido mais autêntico do termo” e “um pai de família extremado em zelos". Proferiu diversas conferências magníficas e foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia, colaborando na “Revista Brasileira de Filosofia”, de cujo conselho de redação foi membro. Colaborou também na revista e no jornal “Reconquista”, periódicos tradicionalistas dirigidos respectivamente por José Pedro Galvão de Sousa e Clovis Lema Garcia, em revistas como "Clima", da qual foi um dos fundadores, "Diálogo", "Convivium" e "Problemas Brasileiros" e em jornais como "Correio Paulistano", "O Estado de S. Paulo", "A Gazeta" e "Folha da Manhã”. Foi, ainda, redator da "Revista da Universidade de São Paulo" e do jornal "A Notícia", de Joinville, Santa Catarina.
Como professor, Heraldo Barbuy lecionou disciplinas como História, Francês, Literatura Francesa e Sociologia Econômica nos colégios Bandeirantes, Pan-americano e Rio Branco, na Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae, na Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de São Paulo e na Fundação Armando Álvares Penteado.
Barbuy - aquele “homem da 'Floresta Negra', ser cósmico” que rumou "para a morte lendo Novalis, Hoelderlin e Rilke, ouvindo Beethoven, Wagner, Richard Strauss e Carl Orff”, no dizer de Paulo Bomfim - nos legou ensaios filosóficos do quilate de “O problema do ser” (1950) e “Marxismo e Religião” (1963). Nesta última obra, demonstrou o Mestre que o marxismo constitui, antes e acima de tudo, uma heresia do Cristianismo, sendo a concepção marxista do Homem não mais do que “a degenerescência da concepção cristã do Homem”.
Na década de 1980, a editora Convívio, dirigida por Adolpho Crippa, publicou uma antologia de Heraldo Barbuy intitulada "O problema do ser e outros ensaios". E por falar em antologia, Gumercindo Rocha Dorea, este incansável editor - que figura ao lado de José Olympio e de Augusto Frederico Schmidt como o maior descobridor de vultos de nossa Literatura e que praticamente inaugurou o gênero ficção científica no Brasil - deve lançar, ainda neste ano de 2008, uma antologia de cem páginas do Prof. Heraldo Barbuy organizada pela viúva deste, a Profa. Belkiss Silveira Barbuy, autora de "Nietzsche e o Cristianismo", obra em que é analisada a posição do autor de "Assim falava Zaratustra" em face da Doutrina Cristã e que também foi publicada pela GRD.
É importante recordar, entretanto, que a obra de Heraldo Barbuy, em que pese toda a sua grandeza, como observa o Prof. José Pedro Galvão de Sousa - o maior pensador tradicionalista do Brasil ao lado de Plínio Salgado, na abalizada opinião de Francisco Elías de Tejada y Spínola - “ficou muito longe de esgotar o tesouro das reflexões que ao longo dos anos ele foi acumulando sobre os grandes problemas da existência e do destino do homem”, sendo que “os que tiveram a ventura de conhecê-lo de perto e de privar de seu convívio bem sabem quanto o conteúdo do seu riquíssimo mundo interior ultrapassou a dimensão dos escritos legados por ele à posteridade”.


(Publicado a 12 de janeiro de 2008 no jornal O Município, São João da Boa Vista, São Paulo)