quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Heraldo Barbuy e "O Beco da Cachaça"

Por Victor Emanuel Vilela Barbuy (publicado no jornal literário "Linguagem Viva" em novembro de 2007)
As novas gerações infelizmente não conhecem esse brilhante professor, pensador, filósofo, sociólogo, historiador, jornalista, tradutor, conferencista e orador que foi Heraldo Barbuy.
Nasceu em São Paulo, no ano de 1913, filho de Hermógenes Barbuy e de Maria Chinaglia Barbuy, aquele que, como observou Gilberto de Mello Kujawsky, foi sempre fiel ao nome, que significa arauto, posto que jamais “deixou de ser o portador da palavra, e do poder espiritual da palavra. Não da palavra oca e sonora, e sim da palavra repassada de pensamento e sentido, ‘logos’”[1]. O autor de “Fernando Pessoa, o outro” – que se considera devedor de Barbuy pela revelação que fez, a ele e a tantos outros, “da vida como missão de grandeza, da cultura como criadora de sentido, da história como fonte da realidade, da poesia e da mística como iniciação ao êxtase”[2] – evocou o “assombroso poder verbal” com que Heraldo Barbuy “familiarizava imediatamente os ouvintes com os temas que focalizava na sala de aula, no salão de conferências, no rádio (onde apareceu amiúde durante algum tempo), na televisão (onde apareceu algumas vezes com enorme sucesso), ou na simples conversa entre amigos”[3].
Heraldo Barbuy foi – no dizer de Paulo Bomfim, o inspirado poeta da Terra Bandeirante – um “cruzeiro estelar” que “guiou a todos através do mar tenebroso destes dias”. A seu lado, o autor de “Armorial” e muitos outros contornaram o “Cabo das Tormentas” e rumaram “para as Índias secretas do pensamento e da beleza”. Barbuy, “último cruzado num mundo onde os homens se mecanizam e as máquinas se espiritualizam”, conduzido, como lembra o autor de “Antônio triste”, pelas “paixões e por sua vontade de acertar, caminhou da trapa ao ceticismo, do ceticismo a São Tomás, de Santo Tomás a Heidegger”[4].
Barbuy – aquele “homem da ‘Floresta Negra’, ser cósmico” que rumou "para a morte lendo Novalis, Hoelderlin e Rilke, ouvindo Beethoven, Wagner, Richard Strauss e Carl Orff”, ainda no dizer do poeta de “Transfiguração”[5] – escreveu ensaios filosóficos fundamentais como “O problema do ser” (1950) e “Marxismo e Religião” (1963). Nesta última obra, demonstrou o Mestre que o marxismo constitui, antes e acima de tudo, uma heresia do Cristianismo, sendo a concepção marxista do Homem não mais do que “a degenerescência da concepção cristã do Homem”[6].
Aquela “personalidade marcante de fulgurante inteligência e de soberbas virtudes humanas”, no dizer do pensador humanista Jessy Santos, aquele que foi, ainda segundo Jessy, um “católico fervoroso”, “um homem religioso no sentido mais autêntico do termo” e “um pai de família extremado em zelos”[7], proferiu dezenas de magníficas conferências e foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia, colaborando na “Revista Brasileira de Filosofia”, de cujo conselho de redação foi membro. Colaborou também na revista e no jornal “Reconquista”, periódicos tradicionalistas dirigidos respectivamente por José Pedro Galvão de Sousa e Clovis Lema Garcia, em revistas como “Clima”, “Diálogo”, “Convivium” e “Problemas Brasileiros” e em jornais como “Correio Paulistano”, “O Estado de S. Paulo”, “Folha da Manhã” e “A Gazeta”.
A obra de Heraldo Barbuy, como lembrou o Prof. José Pedro Galvão de Sousa – o maior pensador tradicionalista do Brasil ao lado de Plínio Salgado, na abalizada opinião de Francisco Elías de Tejada y Spínola[8] – “ficou muito longe de esgotar o tesouro das reflexões que ao longo dos anos ele foi acumulando sobre os grandes problemas da existência e do destino do homem”, sendo que “os que tiveram a ventura de conhecê-lo de perto e de privar de seu convívio bem sabem quanto o conteúdo do seu riquíssimo mundo interior ultrapassou a dimensão dos escritos legados por ele à posteridade”[9]. O mesmo foi observado pelo saudoso e inolvidável Prof. Miguel Reale, na ocasião em que estive em sua casa.
Como professor, Heraldo Barbuy lecionou nos colégios Bandeirantes, Pan-americano e Rio Branco, na Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae, na Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de São Paulo e na Fundação Armando Álvares Penteado. No Colégio Rio Branco, foi professor de Gilberto de Mello Kujawsky, de Paulo Bomfim, Antônio Ermírio de Moraes e de outras ilustres personalidades, incluindo a pessoa com quem se casou, a filósofa e professora universitária Belkiss Silveira Barbuy, autora de “Nietzsche e o Cristianismo”.
Dentre os amigos de Barbuy que freqüentavam sua casa na Rua Groenlândia, destaco o magno filósofo Vicente Ferreira da Silva, maior intérprete de Heidegger no Brasil, sua esposa Dora Ferreira da Silva, poetisa e tradutora de Hölderlin, Rilke e Jung, a irmã desta, Diva de Toledo Piza, espírito profundo, amiga e tradutora de Julián Marías, Mílton Vargas, engenheiro, filósofo e tradutor de grandes poetas de língua inglesa, o filósofo helenista e germanista português Eudoro de Sousa, o pensador e poeta Mário Chamie, o filósofo e teólogo Adolpho Crippa, admirador de Vicente Ferreira da Silva e fundador da revista “Convivium”, os já citados José Pedro Galvão de Sousa, Paulo Bomfim, Gilberto de Mello Kujawsky e Jessy Santos, o romanista Alexandre Augusto de Castro Correa, o filósofo hegeliano Renato Cirell Czerna e tantos outros não menos ilustres.
A primeira obra escrita por Heraldo Barbuy foi o romance “O Beco da Cachaça”, publicado em 1936, quando o autor tinha apenas vinte e três anos de idade.
“O Beco da Cachaça” é – como foi observado por Zélia Ladeira Veras de Almeida Cardoso – “uma obra saudosista”, que mescla “um tom romântico de influência hugoana a vago sabor decadentista, próprio dos textos do início do século”[10].
É em razão de seu tom romântico, influenciado sobretudo por Victor Hugo, que “O Beco da Cachaça” constitui – como notou Maria Lúcia Silveira Rangel – “um livro singular”, muito diverso dos livros de seu tempo, tempo dos escritores “da Semana de 1922 e dos autores regionalistas da década de trinta”[11].
Heraldo Barbuy descreve, em “O Beco da Cachaça” – “preito de um triste a todos os tristes, que na partilha dos bens da Vida, de seu tiveram apenas a derrota e o desespero” – aquela provinciana São Paulo, “triste e encolhida à beira de um riacho sem ondas, embalada à meia luz de lampiões fumegantes, pela viola dos seus trovadores, sacudida à meia noite pelo canto dos seus escravos, oculta sob a grossura de suas baetas, envolta sob o manto da sua neblina eterna, ajoelhada no silêncio das suas igrejas, encantada pela alegria ingênua dos seus domingos festivos, meditativa e grave na sombria austeridade de todos os seus dias”[12].
Em seu “romance de costumes paulistas” do século XIX, Heraldo, “num belo estilo romântico de ressonâncias hugoanas” – como lembrou Belkiss Silveira Barbuy – “narra as vidas interligadas de um velho filósofo e de um jovem e atormentado monge, ambos projeções de sua personalidade básica”[13].
O velho filósofo é Cintra, homem de extraordinária cultura, “a Enciclopédia, a Sabedoria, o dicionário, o orador do beco da Cachaça, o chefe do clube dos Sete”, grupo famoso que se dizia representante dos sete pecados capitais e se arvorava em “Associação Secreta dos Amigos dos Escravos” num tempo em que ainda faltava muito para a Lei Áurea[14].
E o jovem monge, Frei Amaro, - o corcunda, nascido Jacques Godart de Luciis em Paris, filho do gentil-homem italiano Rolando de Luciis e da bela parisiense Brunhilde Louise Godart, filha de “pacatos e ricos burgueses” – é aquele que ao mesmo tempo ama e odeia a formosa Ara, a “menina do livrinho de missa”, filha do poderoso Conde de Alvyllar, assassino de sua mãe.
Frei Amaro, que deveria celebrar o casamento da jovem Ara, a fere mortalmente com um punhal, e no instante seguinte cai também, fulminado pela dor e pelo arrependimento, tendo olhado para a imagem do Cristo que parecia se despregar da cruz e acusar: “Eu fui vestido com a túnica dos loucos e entretanto perdoei! Tu foste vestido com a minha túnica e entretanto te vingas!”[15]
O Beco da Cachaça, em parte um trecho da atual Rua da Quitanda, era, ao tempo descrito por Barbuy, “viela estreita e comunicação escusa da rua do Comércio para a rua da Imperatriz, ao sul do Chafariz do Tebas, ao norte do beco do Inferno, seu irmão mais calmo”. O Beco da Cachaça, “tresudando vinho e fumaça por todos os interstícios desempenhava a função social de indispor entre si as taberneiras e ser, nas suas noites serenas, o teatro das disputas líricas, das dissenções políticas, de todas as lutas permanentes dessa mocidade estudantina cheia de Voltaire e Diderot; dessa mocidade que foi companheira de Castro Alves e Álvares de Azevedo”[16].
Ao esgotar-se a primeira edição de seu dramático e bem escrito romance, Barbuy não permitiu sua reedição, considerando aquela obra – como lembrou Raimundo de Menezes[17] – nada mais do que uma manifestação de extemporâneo lirismo. Mas penso, como Zélia Cardoso, que foi esta, sem sombra de dúvida, “uma auto-crítica rigorosa demais, pois que ‘O Beco da Cachaça’ tem, evidentemente, seu mérito”[18].


[1]Gilberto de Mello Kujawsky, “Heraldo Barbuy e sua maestria cultural”, in Heraldo Barbuy, “O problema do ser e outros ensaios”, São Paulo, Convívio/Ed. da Universidade de São Paulo, 1984, p. XIII.
[2]Idem, “Heraldo Barbuy”, artigo publicado no “Jornal da Tarde” a 19 de janeiro de 1979.
[3]Idem, “Heraldo Barbuy e sua maestria cultural”, op. cit., p. XII.
[4]Paulo Bomfim, “Heraldo Barbuy”, artigo publicado no “Diário de São Paulo” a 21 de janeiro de 1979 e transcrito em sua obra “Aquele menino” (São Paulo, Editora Green Forest do Brasil, 2000), às pp. 184 e 185.
[5]Idem.
[6]Heraldo Barbuy, “Marxismo e Religião”, 2ª ed., São Paulo, Convívio, 1977, p. 13.
[7]Jessy Santos, “Heraldo Barbuy”, in “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XXX, fasc. 113, janeiro-fevereiro-março de 1979, p. 3.
[8]Francisco Elías de Tejada, “Plínio Salgado na Tradição do Brasil”, in “Plínio Salgado – ‘In Memoriam’”, vol. II, São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1985/1986, p. 70.
[9]José Pedro Galvão de Sousa, “Senso comum e senso de mistério”, in “Coleção Tema Atual”, Presença, p. 3. O mesmo texto – um dos mais belos escritos sobre o Prof. Heraldo Barbuy - pode também ser encontrado na “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XXX, fasc. 116, pp. 375 a 396 e em separata da mesma revista.
[10]Zélia Cardoso, “O romance paulista no século XX”, São Paulo, Academia Paulista de Letras, 1983, p. 80.
[11]Maria Lúcia Silveira Rangel, “Saga das famílias Galante e Silveira”, ed. da autora, São Paulo, p. 62.
[12]Heraldo Barbuy, “O Beco da Cachaça”, São Paulo, Empresa Editora J. Fagundes, 1936, p. 13.
[13]Belkiss Silveira Barbuy, “Heraldo Barbuy – uma apresentação”, in “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XXX, fasc. 139, julho-agosto-setembro de 1985, p. 293.
[14]Heraldo Barbuy, op. cit., p. 21.
[15]Idem, p. 275.
[16]Idem, pp. 17 e 18.
[17]Raimundo de Menezes, “Dicionário Literário Brasileiro”, 2ª ed., Rio de Janeiro, LTC, 1978, p. 90.
[18]Zélia Cardoso, op. cit., p. 80.

sábado, 11 de setembro de 2010

O caráter profético do marxismo - Heraldo Barbuy

Faremos neste ensaio a exposição e a crítica sumárias de alguns tópicos essenciais do marxismo. O marxismo é um conjunto de proposições de natureza histórica, sociológica e econômica; essas proposições formam um sistema filosófico, voltado para a ação revolucionária. Dentre as afirmações do marxismo, algumas são totalmnte inverificáveis; outras, puderam ser confrontadas com a experiência e foram pela experiência refutadas. Mas ao marxismo, tanto as proposições inverificávis, quanto as que foram refutadas pela prática, funcionam como um sistema religioso. As críticas racionais e a contestação do marxismo pelos fatos, têm sido completamente inúteis em face da eficiência que o sistema tira do seu caráter religioso.



Não se dá com o marxismo o que se dá com os sistemas científicos, que perderam a vigência desde que não mais coincidiram com a realidade: os grandes credos coletivosd não vivem pela fôrça de suas supostas verdades ou erros científicos, e sim pela fé que despertam. O marxismo é uma religião modernizada, isto é, que se apresenta como científica, - e seu principal autor é uma espécie de profeta bíblico, que retoma certos temas do Antigo e do Nôvo Testamento: tem suas noções próprias da catástrofe purificadora, do Juízo Final e da Redenção da Humanidade. É uma religião que, ao contrário das demais (que se fundam em elementos divisnos e transcendentes), está centrada exclusivamente no Homem e cuja finalidade é a ação revolucionária redentora. Sua mensagem consiste em pregar a revolução total, que deve expurgar o mundo de tôdas as alienações que o infelicitam. Para tanto, êste nôvo credo deve fornecer ao adepto e ao iniciado um método seguro de ação, apoiado numa visão "científica" da natureza, da história e da sociedade.

O marxismo está ligado particularmente ao sistema das idéias de Hegel, não só pelo seu método, - que é a dialética da contradição -, - como também pelas suas teses principais; por exemplo, sem a Lógica e a Fenomenologia do Espírito de Hegel, as teses de Feuerbach, de Marx e de Engels, que vieram a constituir o corpo da filosofia marxista, não teriam sido possíveis. O marxismo nasceu como pequena ramificação da esquerda hegeliana. Mas tem suas relações também com os românticos e com a Escola Histórica.

Apesar de serem antípodas, os marxistas de um lado, e de outro os românticos e a Escola Histórica, nem por isso o marxismo deixou de se beneficiar de algumas teses românticas: recebeu, por exemplo, da Escola Histórica, as críticas que esta última dirigiu ao capitalismo, ao individualismo, e a tôda ordem burguesa consagrada pelos economistas clássicos; Marx é contribuinte involuntário do romantismo, pelo ódio que vota à ordem social que estabeleceu o burguês e o proletário e converteu o mundo num mercado dominado pelo dinheiro. O marxismo está ligado também à literatura política anglo-francesa do século XVIII e do comêço do século XIX, que inventou as utopias do pregresso indefinido da espécie humana, e descreveu a rósea felicidade a que êsse progresso devia conduzir a humanidade futura. O marxismo, porém, tira do método de Hegel uma originalidade que lhe permite não se confundir pura e simplesmente com as demais correntes suas congêneres, apesar do seu íntimo parentesco com os materialismos dos séculos XVIII e XIX, a que se dão os nomes de positivismo, naturalismo científico, cientificismo, fisicismo, biologismo, mecanicismo, etc.

O marxismo se distingue em parte de tôdas essas correntes por fôrça de sua procedência hegeliana. Além disso, não trata separadamente a economia, a história e asociologia, senão que as conjuga e as subordina à sua visão do conjunto. Para Marx não teria cabimento considerar no homem o econômico, o histórico ou o sociológico, fora duma perspectiva totalizante. (Graças a êste método, que era o da Escola Histórica e o de todos os grandes sistemas alemães, devemos o não ter-se a história tornado uma simples enumeração cronológica de fatps; não ter a economia sobrevivido como formulário de leis "racionais", desligadas do espaço e do tempo; não ter a sociologia degenerado inteiramente na coleta dos fatos amorfos e das monografias sociográficas, que nada significam fora da visão global que lhes dá conteúdo e forma.) Ao marxismo devemos por isso largamente a manutenção das relações que unem a história e a sociologia. Devemos também, em parte, a formação do método sociológico chamado "tipologia gloval", ou seja, a sociologia compreendida como ciência dos grandes sistemas sociais. Max Weber, fundador principal da tipologia sociológica, não procede só da Escola Histórica, mas também do marxismo.

Pelas mesmas razões, o materialismo de Marx é sui generis; pretende estar em oposição ao idealismo, porém atribui à matéria o princípio dinâmico do movimento dialético, que os idealistas punham no Espírito Absoluto, ou na Idéia Absoluta. è uma derivação do empirismo e do sensualismo, dos quais tira suas afirmações materialistas; reveste porém essas afirmações das categorias da espeiência filosófica alemã. A matéria, para Marx e Engels, não é o que os fisicistas da época consideravam como tal, e sim o conjunto das relações do homem com a natureza e a sociedade; é a totalidade das sensações que formam um jôgo ativo - dialético - entre os diversos ingredientes da sociedade e entre esta e a natureza: para o marxismo, tudo é resultado da experiência sensível, desde os primeiros movimentos físicos do homem até os graus mais elevados da sua consciência, de sua religião e de sua filosofia. Como para todos os sensualistas, também para Marx não há nada mais do que o reino da experiência sensível. (Como se soubessem o que é o corpo, o que são os sentidos e o que é a natureza, os marxistas nos ensinam que tudo não passa dum jôgo dialético de sensações entre o homem e a natureza).

Dialético, materialista e ateu, o marxismo consegue ser uma construção unitária, da qual dizia o comunista Karl Kautsky, que tinha assimilado a experiência econômica inglêsa, a experiência política francesa e a experiência filosófica alemã. De fato, graças à fusão dêsses três elementos e ao seu caráter profético, o marxismo quer ser uma filosofia total do mundo; quer ser a palavra dialética da verdade, o método infalível, e a mensagem suprema da libertação do homem. Marx denuncia tôdas as filosofias anteriores, como alienações e mistificações, inclusive as filosofias materialistas que o precederam; denuncia tôdas as religiões, todos os Estados, as instituições jurídicas, os regimes sociais e econômicos como testemunhos da alienação, da mistificação e da infelicidade do homem. O marxismo se propõe a salvar o homem dilacerado por todo o processo histórico.

Em vários tópicos de sua obra O Capital, Marx enunciou a teoria da última grande catástrofe da histórica, que há de encerrar a história, e que é a catástrofe do capitalismo (por exemplo, no Vol. III, págs. 203 1 205, e em outros tópicos; tradução francesa de Roy, Éd. Sociales, 1950). Quem quer que leia essa poderosa obra, há de encontrar, depois de longos capítulos eruditíssimos e áridos, momentos duma eloqüência e duma grandeza que lembram os profetas bíblicos. Segundo Marx, o capitalismo, que levou a luta de classes ao ponto extremo, desenvolve suas contradições internas até o amadurecimento final do regime burguês, quando então o processo se resolverá na vitória fatal do proletariado e na aparição da sociedade sem classes. Esta profecia está fundad no materialismo histórico, invoca para si um fundamento científico: nasce ùnicamente do exame das leis, ou supostas leis internas do capitalismo, e das suas contradições. O Manifesto Comunista esclarece que, as mesmas armas de que a burguesia se serviu para abater o sistema feudal se voltam agora contra a burguesia. A burguesia, segundo o Manifesto, não se contentou com forjar apenas as armas que a liqüidarão; produziu também os homens que se servirão dessas armas, os operários modernos, os proletários: e o irônico é que a burguesia, justamente por ter criado um contexto social, de que o proletariado é parte integrante, se apresenta, contra si mesma, como classe revolucionária por excelência; depois do fim da burguesia não pode haver outro regime senão o comunismo. A burguesia, segundo Marx e Engels, teve grande mérito de facilitar a revolução internacional, porque é uma classe cosmopolita, que engendra, como contradição interna, um proletariado, também cosmopolita. Burguesia e proletariado, em suma, são classes anti-nacionais; hostis uma à outra, fazem parte do mesmo processo. O processo se põe como afirmação (burguesia) e como negação (proletariado), porque, como ensinava Hegel, cuja Fenomenologia do Espírito Marx transpõe para o materialismo histórico, a realidade do senhor é o escravo, e a realidade do escravo é o senhor. - Dialèticamente, a burguesia gerou o proletariado que a destruirá; mas êsse proletariado, se bem interpretamos Marx, não é uma simples antíteses da burguesia; sua originalidade, segundo Marx, e o motivo pelo qual essa classe é vista como portadora da revolução total está no seguinte: enquanto nas épocas anteriores as classes dominantes se sucediam no poder, cada qual procurava imprimir à sociedade inteira os seus caracteres próprios, sua visão do mundo, seu estilo de existência. O que era de interêsse da classe dominante se punha nas ideologias como lei eterna, como ordem natural, como princípio divino: foi assim que os economistas clássicos tomaram a ordem burguesa como a ordem definitiva, a mlehor das ordens possíveis; o estilo burguês de vida se tinha tornado algo definitivo, como em outros tempos o estilo aristocrático. Mas oproletariado tem de original, segundo o marxismo, não ser uma classe como as demais, que no passado lutaram pelo poder: não pode nem mesmo ser chamado propriamente de classe; êle não é nada, não tem nada; não tem modo de existência particular; é a negação de tudo quanto já foi categoria histórica, de tudo quanto já foi classe no sentido próprio do têrmo. É o anonimato absoluto, cujo caráter internacional tem como denominador comum se a massa dos oprimidos, dos miseráveis, dos que não têm, nem são nada. Sendo a negação de tudo, o proletariado não pode, como as antigas classes dominantes, querer impor um estilo de vida, que não possui. Por isso, o advento fatal do proletariado, previsto por Marx (fatal, porque dialèticamente inevitável), significará a destruição de tudo quanto existiu anteriormente, de todos os modelos de vida, de tôdas as formas de apropriação da riqueza, de tôdas as garantias de xistência individual. É o estabelecimento, dentro de certo prazo, do coletivismo absoluto. Sendo o proletariado a classe mais baixa das sociedades atuais (está quase ao nível do subterrâneo social chamado Lumpenproletariat), quando êle se levantar, não poderá deixar de abater tudo quanto está acima de si. E, segundo a dialética marxista, não depende da vontade de ninguém impedir essa revolução total: porque a contradição burguesia versus proletariado há de chegar a um ponto em que o capitalismo não poderá sequer manter o proletariado como classe oprimida; em todos os tempos passados, ensinam Marx e Engels, os senhores mantiveram os escravos, pelo menos ao nível da subsistência. Mas o capitalismo tem tais leis internas de acumulação e concentração do capital (longamente estudadas por Marx no fim da L. 1º d'O Capital), que farão com que o proletariado desça cada vez mais na escala social; segundo o Manifesto, a pauperização gradual tornará completamente impossível a subsistência do proletariado no regime capitalista de produção; e nesse dia, a revolução se derá por si mesma.

Acabamos de resumir a profecia segundo a qual o marxismo decreta o fim do regime capitalista: esta profecia decorre, para Marx, duma Lei inexorável, uma lei histórica; ela se realizará de qualquer modo, em função do movimento dialético. Marx e Engels são profetas complexos: concitam o proletariado internacional à luta contra a burguesia e mostram, ao mesmo tempo, que a vitória do proletariado sôbre a burguesia é tão certa e tão necessária quanto necessária e certa foi a vitória da burguesia sôbre a ordem feudal. Não se trata, no marxismo, duma reedição dos profetas dp socialismo sentimental que andavam a procurar idealmente qual seria a melhor forma de sociedade possível; de que modo se poderia estabelecer a harmonia social; como se faria com que o patrão e o operário se entendessem; como abolir a propriedade privada ou tornar proprietários todos os cidadãos, etc. Marx, com o senso crítico dos discípulos de Hegel, ridicularizou todos os socialismos anteriores como formas de frustração e alienação; são socialismos nos quais a classe operária não tomou ainda consciência de sua própria real; representam um momento histórico em que a consciência proletária não está ainda madura; êste momento engendra teorias ridículas, segundo o marxismo, de acôrdo com as quais o problema não seria um problema histórico, e sim uma questão de organizar a sociedade dêste ou daquele modo: mesmo Proudhon, com seu livro Qu'est-ce que la propriété?, no qual responde que a propriedade é um roubo, la proprieté est un vol, foi completamente desmoralizado por Marx. E por quê? Porque, no marxismo, não se trata de pensar ou imaginar a melhor ordem social possível, e sim de descobrir as leis internas, imanentes, do movimento histórico, denunciar suas contradições e descobrir o que fatalmente se dará. Graças a este método dialético, que descobre as leis internas do movimento histórico, Marxs, Engels e os marxistas puderam limpar o caminho de todas os demais socialismo e materialismos, e apresentar o seu próprio socialismo cmo "socialismo científico". O fim da burguesia e a catástrofe do capitalismo podiam ser deduzidos já da Fenomenologia do Espírito de Hegel, onde se encontra a famosa passagem dialética do Senhor e do Escravo: há um momento, em Hegel, em que o Senhor se torna o escravo do Escravo, e o Escravo se torna o senhor do Senhor: ambos fazme parte de um só contexto, no qual cada Têrmo se torna o seu contrário. Só que o proletário, para Marx, não é mais o simples Escravo que se tornará o senhor do Senhor; é algo mais: é a inovação absoltuta, a reconciliação definitiva, o portador messiânico da salvação. Assim, no marxismo, todo o processo histórico terminará com a vitória do proletariado.

BARBUY, Heraldo. Marxismo e Religião. São Paulo: Dominus, 1963. Transcrito das páginas 3 a 11 por Sérgio de Vasconcellos. Foi conservada a grafia do original.