segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Plínio Salgado falou aos estudantes da Universidade Católica de São Paulo (parte inicial do artigo)


No dia 3 de agosto corrente, a convite do Centro de Debates da Sociedade de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo, Plínio Salgado realizou uma conferência no salão nobre daquele estabelecimento. O amplo recinto achava-se literalmente cheio de estudantes, vivamente interessados em ouvir as palavras do autor da “Vida de Jesus”, de “Direitos e Deveres do Homem”, de “Conceito Cristão da Democracia” e tantas outras obras conhecidas e manuseadas pela mocidade estudiosa do nosso país.
Achavam-se presentes professores da Faculdade e de outras casas de ensino, os quais tomaram parte na mesa que presidiu a sessão. Esta foi aberta pelo quintanista Otaviano Junqueira, presidente do Centro de Debates, que, em brilhante discurso, pôs em destaque a significação da visita e conferência de Plínio Salgado, dando em seguida a palavra ao professor Heraldo Barbuy, para saudar o conferencista.
A oração do professor Barbuy foi primorosa e impressionante, fazendo a colocação do problema do Homem em nosso século em termos precisos e afirmando que tudo se reduz ao dilema com Deus ou sem Deus. E, passando a examinar a obra de Plínio Salgado, quer como escritor, quer como homem de ação, declarou que hoje, mais do que nunca, a doutrina pliniana se tornou necessária porque firma os conceitos verdadeiros do Homem, da Sociedade e do Estado. Terminou exaltando a tenacidade, a coerência, a capacidade de sacrifício de Plínio Salgado, sustentando o seu pensamento em meio a injustiças e incompreensões.
Grandes aplausos coroaram a oração do professor Heraldo Barbuy, tendo, logo depois, a palavra, Plínio Salgado, o qual durante uma hora e meia prendeu a atenção dos estudantes.
A conferência do autor de “Psicologia da Revolução” girou em torno da frase do último capítulo desse livro, que diz “A ordem – equilíbrio de forças, harmonia de movimentos – nós so a conseguiremos pondo ordem, antes de tudo, no pensamento nacional”.

(“A Marcha”, ano I, n. 26, 14 de agosto de 1953, p. 1).

quarta-feira, 9 de março de 2011

Heraldo Barbuy - Paulo Bomfim

Heraldo Barbuy

Por Paulo Bomfim


Barbuy, ao contrário de seu irmão Sócrates, não usava a maiêutica como processo de descoberta do próximo. Chegou a todos nós através da simpatia, ou melhor, da empatia. Não fazia perguntas, captava por intuição a sensibilidade de amigos e alunos. Viveu e morreu com genialidade. Possuía um carisma que o tornava raro e ao mesmo tempo simples. Nossa geração, numa viagem sem retorno, tem poucos pontos de referência e de orientação. Geralmente luzes que se apagam com decepções e fugas ao destino.

Barbuy é uma exceção. Cruzeiro estelar, guiou a todos através do mar tenebroso destes dias. A seu lado contornamos o Cabo das Tormentas e rumamos para as Índias secretas do pensamento e da beleza.

Ele, o grande angustiado, soube transmitir paz. Sua casa e seu coração eram portos recolhendo náufragos. Nasceu com a vocação de acordar sonâmbulos, de formar espíritos e plasmar destinos. Mestre por excelência, fez da cátedra uma religião existencial. Nos idos de 40 suas aulas de filosofia, de história e de francês no Rio Branco eram apaixonantes. Através delas íamos vivenciando as correntes da cultura, nascendo e renascendo ao lado de personagens revolucionários e textos encantatórios. Em sua fase política, Barbuy levantou a mocidade com sua candidatura romântica. Se tivesse vencido, a paisagem rala de nossa época teria se povoado de cordilheiras de ideias e florestas de força criadora. Trazia para a política caráter e gênio, cultura e pureza. Exatamente tudo aquilo de que ela carece agora.

Último cruzado num mundo onde os homens se mecanizam e as máquinas se espiritualizam, Heraldo Barbuy, levado por suas paixões e por sua vontade de acertar, caminhou da trapa ao ceticismo, do ceticismo a São Tomás, de Santo Tomás a Heidegger. Mais plotínico do que platônico, mais nietzschiano do que kantiano, abrigava-se às vezes na catedral hegeliana, identificando-se, outras, com a doutrina de Duns Scot e a mística de Jacob Boehme.

Homem da “Floresta Negra”, ser cósmico que caminha para a morte lendo Novalis, Hoelderlin e Rilke, ouvindo Beethoven, Wagner, Richard Strauss e Carl Orff, o caminheiro fez da sombra a face noturna de sua verdade.

Professor de sociologia e de economia na Universidade de São Paulo, filósofo antes de mais nada, marcou a fogo as trevas que o rodeavam.

Em sua casa, humanizada ainda mais pela presença de sua grande companheira Belkiss e de seus filhos, conheci Vicente Ferreira da Silva e a geração inquieta e culta do “Diálogo”. Convivendo com ele cheguei à filosofia e a um romantismo que transcende às escolas estéticas. Ali nasceria também a fraternidade que me une a Gilberto de Mello Kujawski e Manoel Otaviano Junqueira Filho, e a amizade que me aproxima de Dora Ferreira da Silva, Milton Vargas e Jessy Santos.

Serenamente adormecido no barco de ébano, com velas incendiadas e âncoras em flor, Heraldo Barbuy, mergulhando na terra paulista, dirige seu rumo para a eternidade.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Grupos Naturais, Sociedade e Estado

Por Victor Emanuel Vilela Barbuy


A Sociedade é – segundo a profunda concepção tradicional, predominante na Grécia, em Roma e na denominada Idade Média – uma hierarquia de Grupos Sociais Naturais, dentre os quais o primeiro e mais fundamental é a Família. Tal concepção é a única concepção verdadeira, posto que, como sublinha Heraldo Barbuy, “repousa na visão do que a sociedade realmente é: repousa na intuição da essência da sociedade”, definida esta pelo insigne pensador patrício como “síntese de grupos naturais” [1].
A Sociedade é, pois, uma hierarquia de Grupos Sociais Naturais, uma síntese de Corpos Intermediários, cuja cellula mater é a Família. Esta é a mais natural das sociedades menores que formam a Sociedade, uma vez que contém, ainda de acordo com a lição do autor de O problema do ser, todos os liames dos demais grupos, além do liame biológico e de uma religiosidade mais estreita que faz da Família Tradicional, antes e acima de tudo, um círculo religioso [2].
Os Grupos Naturais, que encontram sua razão de ser na própria natureza da Pessoa Humana, podem ser resumidos em:

a) Grupo biológico, através do qual o Homem se projeta no tempo – a Família;

b) Grupos religiosos – as igrejas e demais locais de culto em que o Ente Humano eleva suas preces a Deus;

c) Grupos econômicos – associações profissionais voltadas à defesa do Trabalho, que é um direito natural da Pessoa Humana e ao mesmo um dever desta para o engrandecimento do Bem Comum – Corporações, Sindicatos etc.;

d) Grupos políticos – o Município e a Nação;

e) Grupos educacionais e culturais – escolas, universidades, academias, instituições culturais.

A respeito dos grupos religiosos, econômicos, educacionais e culturais julgamos não ser necessário discorrer mais, de modo que retornaremos ao grupo biológico e, em seguida, cuidaremos dos grupos políticos e, por fim, do Estado, que não é um Grupo Natural, mas sim a síntese espontânea dos Grupos Naturais.
A Família é, no dizer de Plínio Salgado, “o Grupo-Síntese que oferece ao Estado o sentido dos lineamentos exatos” [3], posto que é a Família a força moral em que o Estado Ético-Integral deve ir buscar a sua força, de modo que não há Estado Ético sem Família [4].
No chamado Manifesto de Outubro, mais fundamental documento do Integralismo, Plínio Salgado pondera que o Homem e a Família precederam o Estado, que deve ser forte para manter sua integridade, posto que é a Família quem cria as virtudes que consolidam o Estado, sendo o próprio Estado “uma grande família, um conjunto de famílias” [5].
Podemos dizer que um dos mais graves erros do individualismo liberal e do coletivismo comunista foi o de não considerar os Grupos Naturais em geral e a Família em particular, concebendo, os individualistas, a Sociedade como mera soma de indivíduos, e os coletivistas, como simples massa social. Cumpre ressaltar, com efeito, que os individualistas e os coletivistas, criando, respectivamente, o Monstro Indivíduo e o Monstro Sociedade ou Monstro Estado, não apenas desconsideraram a existência dos Grupos Naturais, como também os combateram de todas as formas possíveis, logrando enfraquecê-los, mas nunca destruí-los.
Sabemos que só há uma Sociedade, uma Nação e um Estado forte onde a Família é forte, de sorte que defendemos o revigoramento da Família, baluarte da Ética, da Moral, dos Bons-costumes, da Tradição. Esta última, definida por Herder como a “cadeia sagrada que liga os homens ao passado”, conservando e transmitindo tudo aquilo “que foi feito pelos que os precederam” [6], constitui um princípio estático-dinâmico, como preleciona Arlindo Veiga dos Santos [7], sendo, ademais, uma das principais bases do Integralismo. Faz-se mister frisar, com efeito, que o ilustre jusfilósofo espanhol Francisco Elías de Tejada y Spínola considerou Plínio Salgado o maior pensador tradicionalista do Brasil, ao lado de José Pedro Galvão de Sousa [8], e que Gustavo Barroso bem classificou o Integralismo como “modalidade nacional das doutrinas tradicionalistas e nacionalistas das chamadas Direitas” [9].
É da Família, cellula mater da Sociedade, que nasce o Município, cellula mater da Nação, que constitui, como ressalta René Pena Chaves, uma reunião de famílias autônomas, ligadas entre si por interesses de vizinhança e organizadas politicamente [10].
O Município, unidade política fundamental, sede das famílias e das classes, constituindo uma reunião de moradores que aspiram ao bem-estar e ao progresso da localidade, deve ser autônomo em tudo o que diz respeito a seus peculiares interesses [11].
O Manifesto Municipalista, redigido por Plínio Salgado e lido por Goffredo Telles Junior durante a V Convenção Nacional do Partido de Representação Popular (PRP), em 1948, afirma que, da mesma forma que “a palavra ESPIRITUALISMO resume nossa filosofia, a palavra MUNICIPALISMO resume nossa política” [12].
Consoante salienta o autor de Psicologia da Revolução no referido Manifesto, o Homem só poderá ser feliz quando for livre e somente será “socialmente livre se viver dentro de uma Pátria moralmente grande” [13].
Ora, prossegue Plínio, um País, “como um todo, só é moralmente grande e politicamente forte quando são pujantes os elementos de que ele se compõe” e o Brasil, do ponto de vista administrativo, é dividido em Estados que consistem em criações de natureza política. Caso consideremos, entretanto, a evolução natural de nossa Sociedade, notaremos que a Nação Brasileira é constituída de Municípios formados de maneira espontânea e que são, portanto, “os elementos naturais de que se compõe o corpo da Nação” [14].
É dentro do Município – preleciona o pensador patrício – que “o Brasil palpita e vive”, que nosso povo “vai tecendo sua existência cotidiana”, que “o agricultor cultiva sua terra, o industrial transforma os produtos, o comerciante troca as mercadorias e que os homens de todas as profissões exercem seus misteres”. Assim, a produção, a prosperidade, a riqueza, a saúde, o bem-estar e a cultura dos brasileiros não podem provir senão do Município, que é, deste modo, “a oficina do progresso nacional” [15].
É em torno da União e do Município que giram quase todos os interesses pertinentes aos cidadãos e à Pátria e, como a vida de cada pessoa se encontra profundamente vinculada às condições do Município em que tal pessoa reside, “a grandeza da União se afirma em razão direta da vitalidade dos Municípios, de que ela se compõe” [16].
Isto posto, importa salientar que o federalismo, enquanto forma de Estado, é totalmente contrário à Tradição Nacional, havendo sido sua importação, pela República, um dos maiores crimes de que foi vítima esta Nação, nascida sob o signo da centralização política e da descentralização administrativa e da preponderância da União e do Município sobre a Província.
Havendo cuidado do primeiro Grupo Social de natureza política, passemos ao segundo, que é a Nação.
A Nação, do latim nasci, nascer, é um conceito eminentemente histórico, cultural e racional, sendo caracterizada, antes de tudo, por sua Tradição, que diferencia seu povo em relação aos demais povos da Terra, forjando o caráter da personalidade nacional.
Formada por seus filhos e pelos Grupos Naturais a que estes pertencem e nos quais exercem melhor seus deveres e direitos, a Nação é uma entidade inconfundível, um organismo dotado de fórmula sociológica, vocação e modo de vida próprios, decorrentes de sua formação histórica e social.
A Nação é – consoante preleciona Plínio Salgado – uma continuidade histórica, no Passado, no Presente e no Porvir, um “patrimônio territorial no espaço geográfico”, uma realidade social, uma expressão moral e ética, como conjunto de pessoas, famílias, sindicatos, corporações, municípios. “É a unidade humana diferenciada pelo meio físico, pela estrutura étnica, pelos índices culturais, pelo idioma, pelo temperamento e vocação de um povo”, podendo faltar-lhe um ou mesmo mais de um de tais elementos, como a unidade linguística ou étnica, mas jamais “aquele espírito de grupo a que se refere Durkheim, com certo exagero, mas que nós podemos aceitar nos seus próprios limites” [17].
A Nação é, ainda segundo o autor da Vida de Jesus, “consciência de Tradição, de Atitude e de Destino histórico” [18], se exprimindo politicamente numa personalidade coletiva, que tem consciência de onde veio, de onde está e de para onde deve ir [19].
Por fim, tratemos do Estado, que, como afirmamos há pouco, não é um Grupo Natural, mas sim a síntese espontânea dos Grupos Naturais, que o precederam.
O Estado, assim, como a Sociedade, é, segundo preleciona Heraldo Barbuy, apenas um meio, sendo a Pessoa Humana o verdadeiro fim [20]. No mesmo sentido entendem, dentre outros, Plínio Salgado [21], Goffredo Telles Junior [22], Tristão de Athayde [23], Ataliba Nogueira [24], Machado Paupério [25], Darcy Azambuja [26] e Marcus Cláudio Acquaviva [27].
Diversamente do Estado Ético hegeliano, que se constitui na fonte única da Moral, da Ética e do Direito, o Estado Ético preconizado pelo Integralismo é o Estado transcendido pela Ética e movido por um ideal ético. Ele existe para servir ao Homem e aos Grupos Naturais e não para ser servido por eles ou violentá-los e reconhece os direitos naturais da Pessoa Humana e não os concede como favores.



Notas:

[1] BARBUY, Heraldo. A Família e a Sociedade. In Servir, n° 1297, ano XXVII, São Paulo, 20 de setembro de 1957, p. 75.
[2] Idem, loc. cit.
[3] SALGADO, Plínio. Palavra nova dos tempos novos. 4ª ed. In SALGADO, Plínio. Obras Completas. 2ª ed., vol. VII. São Paulo: Editora das Américas, 1957, p. 236.
[4] Idem, pp. 235-236.
[5] SALGADO, Plínio. Manifesto de Outubro de 1932. In Sei que vou por aqui!, n. 2, São Paulo, setembro-dezembro de 2004, p. X.
[6] HERDER, apud ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª ed. brasileira coord. e rev. Por Alfredo Bosi; rev. da trad. e trad. dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 1150.
[7] SANTOS, Arlindo Veiga dos. Idéias que marcham no silêncio... São Paulo: Pátria-Nova, 1962, p. 43.
[8] “Ninguém havia entendido a Tradição brasileira antes dele [Plínio Salgado], e, depois, convém apenas compará-la com o empreendimento intelectual de José Pedro Galvão de Sousa em nossos dias, se bem que este tenha apurado até às suas últimas conseqüências os planos das raízes tridentinas, filipinas e hispânicas do Brasil, que, aliás, em Plínio Salgado constam também com patente claridade” (TEJADA, Francisco Elías de. Plínio Salgado na Tradição do Brasil. In Plínio Salgado, in memoriam (volume II – autores estrangeiros). São Paulo: Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986, p. 70.
[9] BARROSO, Gustavo. História do Brasil em quadrinhos. (2ª parte). Desenhos de Wasth Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora Brasil-América, 1979, p. 38.
[10] CHAVES, René Pena. Tese apresentada pela Câmara Municipal de Campinas ao II Congresso das Câmaras Municipais do Estado de São Paulo em 12 a 16 de junho na Cidade de Ribeirão Preto relativa ao II item do temário: Estudo da significação e função dos Municípios e das Câmaras Municipais. Campinas: Oficinas Gráficas “Casa Livro Azul”, 1949, p. 7.
[11] SALGADO, Plínio. Manifesto de Outubro de 1932. In Sei que vou por aqui!, n. 2, São Paulo, setembro-dezembro de 2004, p. XI.
[12] SALGADO, Plínio. Manifesto Municipalista do Partido de Representação Popular. Edição da Secretaria Nacional de Propaganda do PRP, s/d, p. 3.
[13] Idem, loc. cit.
[14] Idem, loc. cit.
[15] Idem, pp. 3-4.
[16] Idem, p. 4.
[17] Idem. Direitos e deveres do Homem. 1ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1950., pp. 129-130.
[18] Idem, p. 134.
[19] Idem, p. 132.
[20] BARBUY, Heraldo. A Família e a Sociedade. In Servir, n° 1297, ano XXVII, São Paulo, 20 de setembro de 1957, p. 77.
[21] SALGADO, Plínio. Madrugada do Espírito. 4ª ed. In SALGADO, Plínio. Obras Completas, 2ª ed., vol. VII. São Paulo: Editora das Américas, 1957, p. 443.
[22] TELLES JUNIOR, Goffredo. Justiça e Júri no Estado Moderno. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1938, p. 31.
[23] ATHAYDE, Tristão de. Política. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1932, p. 77.
[24] NOGUEIRA, J. C. Ataliba. O Estado é um meio e não um fim. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1940, p. 113.
[25] PAUPÉRIO, A. Machado. Teoria Geral do Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, pp. 68-70.
[26] AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 38ª ed. São Paulo: Globo, 1998, p. 122.
[27] ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Teoria Geral do Estado. 2ª ed., revista e aumentada. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p. 83.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Heraldo Barbuy e "O Beco da Cachaça"

Por Victor Emanuel Vilela Barbuy (publicado no jornal literário "Linguagem Viva" em novembro de 2007)
As novas gerações infelizmente não conhecem esse brilhante professor, pensador, filósofo, sociólogo, historiador, jornalista, tradutor, conferencista e orador que foi Heraldo Barbuy.
Nasceu em São Paulo, no ano de 1913, filho de Hermógenes Barbuy e de Maria Chinaglia Barbuy, aquele que, como observou Gilberto de Mello Kujawsky, foi sempre fiel ao nome, que significa arauto, posto que jamais “deixou de ser o portador da palavra, e do poder espiritual da palavra. Não da palavra oca e sonora, e sim da palavra repassada de pensamento e sentido, ‘logos’”[1]. O autor de “Fernando Pessoa, o outro” – que se considera devedor de Barbuy pela revelação que fez, a ele e a tantos outros, “da vida como missão de grandeza, da cultura como criadora de sentido, da história como fonte da realidade, da poesia e da mística como iniciação ao êxtase”[2] – evocou o “assombroso poder verbal” com que Heraldo Barbuy “familiarizava imediatamente os ouvintes com os temas que focalizava na sala de aula, no salão de conferências, no rádio (onde apareceu amiúde durante algum tempo), na televisão (onde apareceu algumas vezes com enorme sucesso), ou na simples conversa entre amigos”[3].
Heraldo Barbuy foi – no dizer de Paulo Bomfim, o inspirado poeta da Terra Bandeirante – um “cruzeiro estelar” que “guiou a todos através do mar tenebroso destes dias”. A seu lado, o autor de “Armorial” e muitos outros contornaram o “Cabo das Tormentas” e rumaram “para as Índias secretas do pensamento e da beleza”. Barbuy, “último cruzado num mundo onde os homens se mecanizam e as máquinas se espiritualizam”, conduzido, como lembra o autor de “Antônio triste”, pelas “paixões e por sua vontade de acertar, caminhou da trapa ao ceticismo, do ceticismo a São Tomás, de Santo Tomás a Heidegger”[4].
Barbuy – aquele “homem da ‘Floresta Negra’, ser cósmico” que rumou "para a morte lendo Novalis, Hoelderlin e Rilke, ouvindo Beethoven, Wagner, Richard Strauss e Carl Orff”, ainda no dizer do poeta de “Transfiguração”[5] – escreveu ensaios filosóficos fundamentais como “O problema do ser” (1950) e “Marxismo e Religião” (1963). Nesta última obra, demonstrou o Mestre que o marxismo constitui, antes e acima de tudo, uma heresia do Cristianismo, sendo a concepção marxista do Homem não mais do que “a degenerescência da concepção cristã do Homem”[6].
Aquela “personalidade marcante de fulgurante inteligência e de soberbas virtudes humanas”, no dizer do pensador humanista Jessy Santos, aquele que foi, ainda segundo Jessy, um “católico fervoroso”, “um homem religioso no sentido mais autêntico do termo” e “um pai de família extremado em zelos”[7], proferiu dezenas de magníficas conferências e foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia, colaborando na “Revista Brasileira de Filosofia”, de cujo conselho de redação foi membro. Colaborou também na revista e no jornal “Reconquista”, periódicos tradicionalistas dirigidos respectivamente por José Pedro Galvão de Sousa e Clovis Lema Garcia, em revistas como “Clima”, “Diálogo”, “Convivium” e “Problemas Brasileiros” e em jornais como “Correio Paulistano”, “O Estado de S. Paulo”, “Folha da Manhã” e “A Gazeta”.
A obra de Heraldo Barbuy, como lembrou o Prof. José Pedro Galvão de Sousa – o maior pensador tradicionalista do Brasil ao lado de Plínio Salgado, na abalizada opinião de Francisco Elías de Tejada y Spínola[8] – “ficou muito longe de esgotar o tesouro das reflexões que ao longo dos anos ele foi acumulando sobre os grandes problemas da existência e do destino do homem”, sendo que “os que tiveram a ventura de conhecê-lo de perto e de privar de seu convívio bem sabem quanto o conteúdo do seu riquíssimo mundo interior ultrapassou a dimensão dos escritos legados por ele à posteridade”[9]. O mesmo foi observado pelo saudoso e inolvidável Prof. Miguel Reale, na ocasião em que estive em sua casa.
Como professor, Heraldo Barbuy lecionou nos colégios Bandeirantes, Pan-americano e Rio Branco, na Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae, na Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de São Paulo e na Fundação Armando Álvares Penteado. No Colégio Rio Branco, foi professor de Gilberto de Mello Kujawsky, de Paulo Bomfim, Antônio Ermírio de Moraes e de outras ilustres personalidades, incluindo a pessoa com quem se casou, a filósofa e professora universitária Belkiss Silveira Barbuy, autora de “Nietzsche e o Cristianismo”.
Dentre os amigos de Barbuy que freqüentavam sua casa na Rua Groenlândia, destaco o magno filósofo Vicente Ferreira da Silva, maior intérprete de Heidegger no Brasil, sua esposa Dora Ferreira da Silva, poetisa e tradutora de Hölderlin, Rilke e Jung, a irmã desta, Diva de Toledo Piza, espírito profundo, amiga e tradutora de Julián Marías, Mílton Vargas, engenheiro, filósofo e tradutor de grandes poetas de língua inglesa, o filósofo helenista e germanista português Eudoro de Sousa, o pensador e poeta Mário Chamie, o filósofo e teólogo Adolpho Crippa, admirador de Vicente Ferreira da Silva e fundador da revista “Convivium”, os já citados José Pedro Galvão de Sousa, Paulo Bomfim, Gilberto de Mello Kujawsky e Jessy Santos, o romanista Alexandre Augusto de Castro Correa, o filósofo hegeliano Renato Cirell Czerna e tantos outros não menos ilustres.
A primeira obra escrita por Heraldo Barbuy foi o romance “O Beco da Cachaça”, publicado em 1936, quando o autor tinha apenas vinte e três anos de idade.
“O Beco da Cachaça” é – como foi observado por Zélia Ladeira Veras de Almeida Cardoso – “uma obra saudosista”, que mescla “um tom romântico de influência hugoana a vago sabor decadentista, próprio dos textos do início do século”[10].
É em razão de seu tom romântico, influenciado sobretudo por Victor Hugo, que “O Beco da Cachaça” constitui – como notou Maria Lúcia Silveira Rangel – “um livro singular”, muito diverso dos livros de seu tempo, tempo dos escritores “da Semana de 1922 e dos autores regionalistas da década de trinta”[11].
Heraldo Barbuy descreve, em “O Beco da Cachaça” – “preito de um triste a todos os tristes, que na partilha dos bens da Vida, de seu tiveram apenas a derrota e o desespero” – aquela provinciana São Paulo, “triste e encolhida à beira de um riacho sem ondas, embalada à meia luz de lampiões fumegantes, pela viola dos seus trovadores, sacudida à meia noite pelo canto dos seus escravos, oculta sob a grossura de suas baetas, envolta sob o manto da sua neblina eterna, ajoelhada no silêncio das suas igrejas, encantada pela alegria ingênua dos seus domingos festivos, meditativa e grave na sombria austeridade de todos os seus dias”[12].
Em seu “romance de costumes paulistas” do século XIX, Heraldo, “num belo estilo romântico de ressonâncias hugoanas” – como lembrou Belkiss Silveira Barbuy – “narra as vidas interligadas de um velho filósofo e de um jovem e atormentado monge, ambos projeções de sua personalidade básica”[13].
O velho filósofo é Cintra, homem de extraordinária cultura, “a Enciclopédia, a Sabedoria, o dicionário, o orador do beco da Cachaça, o chefe do clube dos Sete”, grupo famoso que se dizia representante dos sete pecados capitais e se arvorava em “Associação Secreta dos Amigos dos Escravos” num tempo em que ainda faltava muito para a Lei Áurea[14].
E o jovem monge, Frei Amaro, - o corcunda, nascido Jacques Godart de Luciis em Paris, filho do gentil-homem italiano Rolando de Luciis e da bela parisiense Brunhilde Louise Godart, filha de “pacatos e ricos burgueses” – é aquele que ao mesmo tempo ama e odeia a formosa Ara, a “menina do livrinho de missa”, filha do poderoso Conde de Alvyllar, assassino de sua mãe.
Frei Amaro, que deveria celebrar o casamento da jovem Ara, a fere mortalmente com um punhal, e no instante seguinte cai também, fulminado pela dor e pelo arrependimento, tendo olhado para a imagem do Cristo que parecia se despregar da cruz e acusar: “Eu fui vestido com a túnica dos loucos e entretanto perdoei! Tu foste vestido com a minha túnica e entretanto te vingas!”[15]
O Beco da Cachaça, em parte um trecho da atual Rua da Quitanda, era, ao tempo descrito por Barbuy, “viela estreita e comunicação escusa da rua do Comércio para a rua da Imperatriz, ao sul do Chafariz do Tebas, ao norte do beco do Inferno, seu irmão mais calmo”. O Beco da Cachaça, “tresudando vinho e fumaça por todos os interstícios desempenhava a função social de indispor entre si as taberneiras e ser, nas suas noites serenas, o teatro das disputas líricas, das dissenções políticas, de todas as lutas permanentes dessa mocidade estudantina cheia de Voltaire e Diderot; dessa mocidade que foi companheira de Castro Alves e Álvares de Azevedo”[16].
Ao esgotar-se a primeira edição de seu dramático e bem escrito romance, Barbuy não permitiu sua reedição, considerando aquela obra – como lembrou Raimundo de Menezes[17] – nada mais do que uma manifestação de extemporâneo lirismo. Mas penso, como Zélia Cardoso, que foi esta, sem sombra de dúvida, “uma auto-crítica rigorosa demais, pois que ‘O Beco da Cachaça’ tem, evidentemente, seu mérito”[18].


[1]Gilberto de Mello Kujawsky, “Heraldo Barbuy e sua maestria cultural”, in Heraldo Barbuy, “O problema do ser e outros ensaios”, São Paulo, Convívio/Ed. da Universidade de São Paulo, 1984, p. XIII.
[2]Idem, “Heraldo Barbuy”, artigo publicado no “Jornal da Tarde” a 19 de janeiro de 1979.
[3]Idem, “Heraldo Barbuy e sua maestria cultural”, op. cit., p. XII.
[4]Paulo Bomfim, “Heraldo Barbuy”, artigo publicado no “Diário de São Paulo” a 21 de janeiro de 1979 e transcrito em sua obra “Aquele menino” (São Paulo, Editora Green Forest do Brasil, 2000), às pp. 184 e 185.
[5]Idem.
[6]Heraldo Barbuy, “Marxismo e Religião”, 2ª ed., São Paulo, Convívio, 1977, p. 13.
[7]Jessy Santos, “Heraldo Barbuy”, in “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XXX, fasc. 113, janeiro-fevereiro-março de 1979, p. 3.
[8]Francisco Elías de Tejada, “Plínio Salgado na Tradição do Brasil”, in “Plínio Salgado – ‘In Memoriam’”, vol. II, São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1985/1986, p. 70.
[9]José Pedro Galvão de Sousa, “Senso comum e senso de mistério”, in “Coleção Tema Atual”, Presença, p. 3. O mesmo texto – um dos mais belos escritos sobre o Prof. Heraldo Barbuy - pode também ser encontrado na “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XXX, fasc. 116, pp. 375 a 396 e em separata da mesma revista.
[10]Zélia Cardoso, “O romance paulista no século XX”, São Paulo, Academia Paulista de Letras, 1983, p. 80.
[11]Maria Lúcia Silveira Rangel, “Saga das famílias Galante e Silveira”, ed. da autora, São Paulo, p. 62.
[12]Heraldo Barbuy, “O Beco da Cachaça”, São Paulo, Empresa Editora J. Fagundes, 1936, p. 13.
[13]Belkiss Silveira Barbuy, “Heraldo Barbuy – uma apresentação”, in “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XXX, fasc. 139, julho-agosto-setembro de 1985, p. 293.
[14]Heraldo Barbuy, op. cit., p. 21.
[15]Idem, p. 275.
[16]Idem, pp. 17 e 18.
[17]Raimundo de Menezes, “Dicionário Literário Brasileiro”, 2ª ed., Rio de Janeiro, LTC, 1978, p. 90.
[18]Zélia Cardoso, op. cit., p. 80.

sábado, 11 de setembro de 2010

O caráter profético do marxismo - Heraldo Barbuy

Faremos neste ensaio a exposição e a crítica sumárias de alguns tópicos essenciais do marxismo. O marxismo é um conjunto de proposições de natureza histórica, sociológica e econômica; essas proposições formam um sistema filosófico, voltado para a ação revolucionária. Dentre as afirmações do marxismo, algumas são totalmnte inverificáveis; outras, puderam ser confrontadas com a experiência e foram pela experiência refutadas. Mas ao marxismo, tanto as proposições inverificávis, quanto as que foram refutadas pela prática, funcionam como um sistema religioso. As críticas racionais e a contestação do marxismo pelos fatos, têm sido completamente inúteis em face da eficiência que o sistema tira do seu caráter religioso.



Não se dá com o marxismo o que se dá com os sistemas científicos, que perderam a vigência desde que não mais coincidiram com a realidade: os grandes credos coletivosd não vivem pela fôrça de suas supostas verdades ou erros científicos, e sim pela fé que despertam. O marxismo é uma religião modernizada, isto é, que se apresenta como científica, - e seu principal autor é uma espécie de profeta bíblico, que retoma certos temas do Antigo e do Nôvo Testamento: tem suas noções próprias da catástrofe purificadora, do Juízo Final e da Redenção da Humanidade. É uma religião que, ao contrário das demais (que se fundam em elementos divisnos e transcendentes), está centrada exclusivamente no Homem e cuja finalidade é a ação revolucionária redentora. Sua mensagem consiste em pregar a revolução total, que deve expurgar o mundo de tôdas as alienações que o infelicitam. Para tanto, êste nôvo credo deve fornecer ao adepto e ao iniciado um método seguro de ação, apoiado numa visão "científica" da natureza, da história e da sociedade.

O marxismo está ligado particularmente ao sistema das idéias de Hegel, não só pelo seu método, - que é a dialética da contradição -, - como também pelas suas teses principais; por exemplo, sem a Lógica e a Fenomenologia do Espírito de Hegel, as teses de Feuerbach, de Marx e de Engels, que vieram a constituir o corpo da filosofia marxista, não teriam sido possíveis. O marxismo nasceu como pequena ramificação da esquerda hegeliana. Mas tem suas relações também com os românticos e com a Escola Histórica.

Apesar de serem antípodas, os marxistas de um lado, e de outro os românticos e a Escola Histórica, nem por isso o marxismo deixou de se beneficiar de algumas teses românticas: recebeu, por exemplo, da Escola Histórica, as críticas que esta última dirigiu ao capitalismo, ao individualismo, e a tôda ordem burguesa consagrada pelos economistas clássicos; Marx é contribuinte involuntário do romantismo, pelo ódio que vota à ordem social que estabeleceu o burguês e o proletário e converteu o mundo num mercado dominado pelo dinheiro. O marxismo está ligado também à literatura política anglo-francesa do século XVIII e do comêço do século XIX, que inventou as utopias do pregresso indefinido da espécie humana, e descreveu a rósea felicidade a que êsse progresso devia conduzir a humanidade futura. O marxismo, porém, tira do método de Hegel uma originalidade que lhe permite não se confundir pura e simplesmente com as demais correntes suas congêneres, apesar do seu íntimo parentesco com os materialismos dos séculos XVIII e XIX, a que se dão os nomes de positivismo, naturalismo científico, cientificismo, fisicismo, biologismo, mecanicismo, etc.

O marxismo se distingue em parte de tôdas essas correntes por fôrça de sua procedência hegeliana. Além disso, não trata separadamente a economia, a história e asociologia, senão que as conjuga e as subordina à sua visão do conjunto. Para Marx não teria cabimento considerar no homem o econômico, o histórico ou o sociológico, fora duma perspectiva totalizante. (Graças a êste método, que era o da Escola Histórica e o de todos os grandes sistemas alemães, devemos o não ter-se a história tornado uma simples enumeração cronológica de fatps; não ter a economia sobrevivido como formulário de leis "racionais", desligadas do espaço e do tempo; não ter a sociologia degenerado inteiramente na coleta dos fatos amorfos e das monografias sociográficas, que nada significam fora da visão global que lhes dá conteúdo e forma.) Ao marxismo devemos por isso largamente a manutenção das relações que unem a história e a sociologia. Devemos também, em parte, a formação do método sociológico chamado "tipologia gloval", ou seja, a sociologia compreendida como ciência dos grandes sistemas sociais. Max Weber, fundador principal da tipologia sociológica, não procede só da Escola Histórica, mas também do marxismo.

Pelas mesmas razões, o materialismo de Marx é sui generis; pretende estar em oposição ao idealismo, porém atribui à matéria o princípio dinâmico do movimento dialético, que os idealistas punham no Espírito Absoluto, ou na Idéia Absoluta. è uma derivação do empirismo e do sensualismo, dos quais tira suas afirmações materialistas; reveste porém essas afirmações das categorias da espeiência filosófica alemã. A matéria, para Marx e Engels, não é o que os fisicistas da época consideravam como tal, e sim o conjunto das relações do homem com a natureza e a sociedade; é a totalidade das sensações que formam um jôgo ativo - dialético - entre os diversos ingredientes da sociedade e entre esta e a natureza: para o marxismo, tudo é resultado da experiência sensível, desde os primeiros movimentos físicos do homem até os graus mais elevados da sua consciência, de sua religião e de sua filosofia. Como para todos os sensualistas, também para Marx não há nada mais do que o reino da experiência sensível. (Como se soubessem o que é o corpo, o que são os sentidos e o que é a natureza, os marxistas nos ensinam que tudo não passa dum jôgo dialético de sensações entre o homem e a natureza).

Dialético, materialista e ateu, o marxismo consegue ser uma construção unitária, da qual dizia o comunista Karl Kautsky, que tinha assimilado a experiência econômica inglêsa, a experiência política francesa e a experiência filosófica alemã. De fato, graças à fusão dêsses três elementos e ao seu caráter profético, o marxismo quer ser uma filosofia total do mundo; quer ser a palavra dialética da verdade, o método infalível, e a mensagem suprema da libertação do homem. Marx denuncia tôdas as filosofias anteriores, como alienações e mistificações, inclusive as filosofias materialistas que o precederam; denuncia tôdas as religiões, todos os Estados, as instituições jurídicas, os regimes sociais e econômicos como testemunhos da alienação, da mistificação e da infelicidade do homem. O marxismo se propõe a salvar o homem dilacerado por todo o processo histórico.

Em vários tópicos de sua obra O Capital, Marx enunciou a teoria da última grande catástrofe da histórica, que há de encerrar a história, e que é a catástrofe do capitalismo (por exemplo, no Vol. III, págs. 203 1 205, e em outros tópicos; tradução francesa de Roy, Éd. Sociales, 1950). Quem quer que leia essa poderosa obra, há de encontrar, depois de longos capítulos eruditíssimos e áridos, momentos duma eloqüência e duma grandeza que lembram os profetas bíblicos. Segundo Marx, o capitalismo, que levou a luta de classes ao ponto extremo, desenvolve suas contradições internas até o amadurecimento final do regime burguês, quando então o processo se resolverá na vitória fatal do proletariado e na aparição da sociedade sem classes. Esta profecia está fundad no materialismo histórico, invoca para si um fundamento científico: nasce ùnicamente do exame das leis, ou supostas leis internas do capitalismo, e das suas contradições. O Manifesto Comunista esclarece que, as mesmas armas de que a burguesia se serviu para abater o sistema feudal se voltam agora contra a burguesia. A burguesia, segundo o Manifesto, não se contentou com forjar apenas as armas que a liqüidarão; produziu também os homens que se servirão dessas armas, os operários modernos, os proletários: e o irônico é que a burguesia, justamente por ter criado um contexto social, de que o proletariado é parte integrante, se apresenta, contra si mesma, como classe revolucionária por excelência; depois do fim da burguesia não pode haver outro regime senão o comunismo. A burguesia, segundo Marx e Engels, teve grande mérito de facilitar a revolução internacional, porque é uma classe cosmopolita, que engendra, como contradição interna, um proletariado, também cosmopolita. Burguesia e proletariado, em suma, são classes anti-nacionais; hostis uma à outra, fazem parte do mesmo processo. O processo se põe como afirmação (burguesia) e como negação (proletariado), porque, como ensinava Hegel, cuja Fenomenologia do Espírito Marx transpõe para o materialismo histórico, a realidade do senhor é o escravo, e a realidade do escravo é o senhor. - Dialèticamente, a burguesia gerou o proletariado que a destruirá; mas êsse proletariado, se bem interpretamos Marx, não é uma simples antíteses da burguesia; sua originalidade, segundo Marx, e o motivo pelo qual essa classe é vista como portadora da revolução total está no seguinte: enquanto nas épocas anteriores as classes dominantes se sucediam no poder, cada qual procurava imprimir à sociedade inteira os seus caracteres próprios, sua visão do mundo, seu estilo de existência. O que era de interêsse da classe dominante se punha nas ideologias como lei eterna, como ordem natural, como princípio divino: foi assim que os economistas clássicos tomaram a ordem burguesa como a ordem definitiva, a mlehor das ordens possíveis; o estilo burguês de vida se tinha tornado algo definitivo, como em outros tempos o estilo aristocrático. Mas oproletariado tem de original, segundo o marxismo, não ser uma classe como as demais, que no passado lutaram pelo poder: não pode nem mesmo ser chamado propriamente de classe; êle não é nada, não tem nada; não tem modo de existência particular; é a negação de tudo quanto já foi categoria histórica, de tudo quanto já foi classe no sentido próprio do têrmo. É o anonimato absoluto, cujo caráter internacional tem como denominador comum se a massa dos oprimidos, dos miseráveis, dos que não têm, nem são nada. Sendo a negação de tudo, o proletariado não pode, como as antigas classes dominantes, querer impor um estilo de vida, que não possui. Por isso, o advento fatal do proletariado, previsto por Marx (fatal, porque dialèticamente inevitável), significará a destruição de tudo quanto existiu anteriormente, de todos os modelos de vida, de tôdas as formas de apropriação da riqueza, de tôdas as garantias de xistência individual. É o estabelecimento, dentro de certo prazo, do coletivismo absoluto. Sendo o proletariado a classe mais baixa das sociedades atuais (está quase ao nível do subterrâneo social chamado Lumpenproletariat), quando êle se levantar, não poderá deixar de abater tudo quanto está acima de si. E, segundo a dialética marxista, não depende da vontade de ninguém impedir essa revolução total: porque a contradição burguesia versus proletariado há de chegar a um ponto em que o capitalismo não poderá sequer manter o proletariado como classe oprimida; em todos os tempos passados, ensinam Marx e Engels, os senhores mantiveram os escravos, pelo menos ao nível da subsistência. Mas o capitalismo tem tais leis internas de acumulação e concentração do capital (longamente estudadas por Marx no fim da L. 1º d'O Capital), que farão com que o proletariado desça cada vez mais na escala social; segundo o Manifesto, a pauperização gradual tornará completamente impossível a subsistência do proletariado no regime capitalista de produção; e nesse dia, a revolução se derá por si mesma.

Acabamos de resumir a profecia segundo a qual o marxismo decreta o fim do regime capitalista: esta profecia decorre, para Marx, duma Lei inexorável, uma lei histórica; ela se realizará de qualquer modo, em função do movimento dialético. Marx e Engels são profetas complexos: concitam o proletariado internacional à luta contra a burguesia e mostram, ao mesmo tempo, que a vitória do proletariado sôbre a burguesia é tão certa e tão necessária quanto necessária e certa foi a vitória da burguesia sôbre a ordem feudal. Não se trata, no marxismo, duma reedição dos profetas dp socialismo sentimental que andavam a procurar idealmente qual seria a melhor forma de sociedade possível; de que modo se poderia estabelecer a harmonia social; como se faria com que o patrão e o operário se entendessem; como abolir a propriedade privada ou tornar proprietários todos os cidadãos, etc. Marx, com o senso crítico dos discípulos de Hegel, ridicularizou todos os socialismos anteriores como formas de frustração e alienação; são socialismos nos quais a classe operária não tomou ainda consciência de sua própria real; representam um momento histórico em que a consciência proletária não está ainda madura; êste momento engendra teorias ridículas, segundo o marxismo, de acôrdo com as quais o problema não seria um problema histórico, e sim uma questão de organizar a sociedade dêste ou daquele modo: mesmo Proudhon, com seu livro Qu'est-ce que la propriété?, no qual responde que a propriedade é um roubo, la proprieté est un vol, foi completamente desmoralizado por Marx. E por quê? Porque, no marxismo, não se trata de pensar ou imaginar a melhor ordem social possível, e sim de descobrir as leis internas, imanentes, do movimento histórico, denunciar suas contradições e descobrir o que fatalmente se dará. Graças a este método dialético, que descobre as leis internas do movimento histórico, Marxs, Engels e os marxistas puderam limpar o caminho de todas os demais socialismo e materialismos, e apresentar o seu próprio socialismo cmo "socialismo científico". O fim da burguesia e a catástrofe do capitalismo podiam ser deduzidos já da Fenomenologia do Espírito de Hegel, onde se encontra a famosa passagem dialética do Senhor e do Escravo: há um momento, em Hegel, em que o Senhor se torna o escravo do Escravo, e o Escravo se torna o senhor do Senhor: ambos fazme parte de um só contexto, no qual cada Têrmo se torna o seu contrário. Só que o proletário, para Marx, não é mais o simples Escravo que se tornará o senhor do Senhor; é algo mais: é a inovação absoltuta, a reconciliação definitiva, o portador messiânico da salvação. Assim, no marxismo, todo o processo histórico terminará com a vitória do proletariado.

BARBUY, Heraldo. Marxismo e Religião. São Paulo: Dominus, 1963. Transcrito das páginas 3 a 11 por Sérgio de Vasconcellos. Foi conservada a grafia do original.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A ordem natural - Heraldo Barbuy

Todo direito se funda no critério moral do justo e do injusto inato na razão humana. O direito natural não foi inventado pela razão, nem fabricado pelos juristas. Não é imanente mas transcendente. Está na razão, anteriormente a todo direito escrito. É uma norma de conduta tão sólida como os princípios da inteligência são uma norma da atividade especulativa e assim como não se pode pensar fora dos princípios da inteligência, assim também não se pode agir fora do princípio pelo qual devemos fazer o bem e evitar o mal. Santo Tomás elaborou uma admirável fundamentação metafísica do direito natural, que é constituído pelos princípios inerentes à natureza racional do homem; e o direito civil só é direito quando traduz o direito natural. Os Estados não são a fonte da moral e do direito e uma lei não é justa pelo simples fato de ter sido promulgada pelo Estado. Os Estados contemporâneos, oriundos do individualismo com suas raízes idealistas e do socialismo, com suas raízes materialistas, podem promulgar e promulgam muitas leis injustas, que ferem os princípios do direito natural. O Estado individualista, e o Estado socialista principalmente, já são em si mesmos violações do direito natural que repele, com a mesma energia, o individualismo e o socialismo.
O direito natural é um conjunto de preceitos transcendentes que devem reger não só o comportamento dos indivíduos, mas também a ação dos Estados. É um limite que se impõe ao poder cada vez maior do Estado, que aniquila, nega, destrói os mais invioláveis direitos naturais da personalidade humana. O Estado contemporâneo, fundando-se no incrível pressuposto de que o indivíduo vive para a espécie e o cidadão para o Estado, se converteu numa sociedade anônima de fabricação de leis em massa e em série, que não têm na menor conta o fato essencial pelo qual o Estado não é fim mas simples meio e a personalidade humana não é simples meio mas verdadeiro fim. Tudo quanto destrói os direitos e as liberdades concretas da personalidade humana atinge frontalmente o direito natural, é uma violação da lei verdadeira, que não passará impunemente porque há de reverter na maior das infelicidades sociais. Só o direito natural é justo. E um Estado só realizará a justiça social quando todas as suas leis escritas se fundarem na razão natural, em diametral oposição com as reformas atuais, que fazem do indivíduo um autômato, da sociedade, um rebanho e da liberdade, um mito. Pode-se legalizar a injustiça e a fraude; pode-se erigir em sistema a espoliação da família pelos impostos de transmissão e as partilhas obrigatórias; pode-se eliminar o direito de propriedade pelos tributos extorsivos; pode-se proletarizar o trabalhador e gravar o rendimento do trabalho com taxas excessivas e contribuições calamitosas; pode-se confundir a educação com a instrução, negando à religião o direito de educar e conferindo ao Estado o a obrigação inoperante de instruir. Pode-se em suma negar o direito natural em todos os seus graus. Mas não se pode com isso abolir um profundo senso de injustiça, nem substituir o direito natural por um direito artificial. O Estado tem a força para garantir a execução de suas leis escritas, justas ou injustas. Mas a ordem natural tem uma sanção muito mais poderosa no fato de que toda a sua violação é punida pela desgraça geral, pela desordem, pela instabilidade, pela revolta e pelo caos.
(In Ecos Universitários (Órgão Oficial do Centro Acadêmico "Sedes Sapientiae". Ano III, nº 13, São Paulo, setembro de 1950, p. 1).

segunda-feira, 30 de março de 2009

Prefácio de "O problema do Ser" - Heraldo Barbuy



PREFÁCIO



O autor do presente trabalho diante do dilema de escolher e desenvolver com relativa perfeição um tema secundário — ou escolher e desenvolver de modo imperfeito e incompleto o tema central de todo pensamento filosófico, — o tema do ser — não hesitou em optar por esta última solução, certo de que a intuição e o problema do ser constituem o núcleo vital de toda filosofia, através do qual, como do centro de uma circunferência, podem dominar-se simultaneamente todos os pontos da periferia.
Não há pensamento filosófico, realmente capaz de prescindir da intuição do ser e dos seus problemas, e a mesma filosofia contemporânea dos valores, bem como as formas já transactas do idealismo, do positivismo e do materialismo, erigindo-se em correntes de pensamento anti-substancialista, longe de eliminar o ser de suas cogitações, nada mais fazem do que subtraí-lo ficticiamente da sua linguagem, — porque o pensamento do ser e a meditação sobre a natureza do que é, são tão inerentes à filosofia, como a filosofia ê inerente do objetivo das suas indagações.

Assim o tema do ser, que não pudemos infelizmente, nos limites deste trabalho, desenvolver em toda a sua amplitude, é o único que nos possa conduzir ao âmago e à essência da filosofia. Dada a magnitude do tema, seja-nos perdoado o havermos tratado sumariamente problemas de grande relevo, que se levantam a cada passo no decurso destas páginas, deixando à margem outros que mereceriam a maior atenção. Mas o nosso propósito não podia ser o de redigir um tratado e sim apenas o de expor de maneira sucinta e com justa modéstia, os fundamentos da atualidade do pensamento do ser. O ser é objeto essencial da filosofia — constitui a filosofia mesma — e foi em vão que estes três últimos séculos de pensamento, nas suas linhas dominantes, tentaram contornar o pensamento substancial do ser, dando-se a si mesmos a ilusão de o haverem superado, pelo simples fato de se manterem ao seu derredor sem chegar até o seu núcleo.
Se não há na filosofia tema de maior importância que o do ser, não há outro também que seja tão propício ao estudo de todas as correntes filosóficas. Todo aquele que forja ou que desenvolve uma visão determinada do mundo e da vida, coloca-se dentro de um ponto de vista, através do qual se torna possível a exposição coerente e a crítica rigorosa de todos os demais, constituindo também essa crítica uma revisão permanente do seu próprio ponto de partida. Não há nada mais nefasto no ensino da filosofia do que a exposição desordenada, heterogênea, sem nexo, de assuntos dispersos, destituídos de todo significado, porque não referidos a uma posição determinada, destituídos de toda coerência porque não governados por uma atitude dominante. A filosofia é uma vivência e não um conjunto de fórmulas. E formação e não apenas informação.
Menos perigoso não é o hábito de tratar sociologicamente a filosofia, hábito que o autor deste trabalho procurou rigorosamente evitar, pela muita preocupação que sempre lhe trouxeram os problemas da história e da sociologia e pelo conhecimento nítido de que a filosofia e a sociologia abrangem zonas distintas e de que não há nada mais absurdo nem mais anti-sociológico do que tratar sociologicamente os problemas da filosofia.
E finalmente, nos limites desta tese, não nos foi possível abordar senão alguns aspectos da filosofia do ser, eliminando por fim as citações eruditas que nada mais faziam do que sobrecarregá-la. Citaram-se apenas alguns autores, dos inúmeros cuja leitura no correr dos anos influiu nas presentes considerações.
HERALDO BARBUY


São Paulo, 7 de fevereiro de 1950